Ingrid Fagundez
Da BBC Brasil em São Paulo
Cortella lança o livro "Por que fazemos o que fazemos?" sobre a busca de propósito no trabalho |
Segunda-feira, seis
da manhã. O despertador toca e você não quer sair da cama. Está cansado? Ou não
vê sentido no que faz?
Na introdução de seu novo livro, o filósofo e escritor Mario
Sergio Cortella coloca em poucas palavras o questionamento central da obra Por
que fazemos o que fazemos?. Lançada em julho, ela trata da busca por um
propósito no trabalho, uma das maiores aflições contemporâneas.
Em entrevista à BBC Brasil, Cortella, também doutor em
Educação e professor, fala como um mundo de múltiplas possibilidades levou as
pessoas a negarem ser apenas uma peça na engrenagem.
O filósofo explica como a combinação de um cenário
imediatista, anos de bonança e pais protetores fez com que a "busca por
propósito" dos jovens seja muitas vezes incompatível com a realidade.
"No dia a dia, eles se colocam como alguém que vai ter
um grande legado, mas ficam imaginando o legado como algo imediato."
Essa visão "idílica", afirm, transforma
escritórios e salas de aula em palcos de confronto entre gerações.
"Parte da nova geração chega nas empresas mal-educada.
Ela não chega mal-escolarizada, chega mal-educada. Não tem noção de hierarquia,
de metas e prazos e acha que você é o pai dela."
Leia os principais trechos da entrevista abaixo:
BBC Brasil - O que
desencadeou a volta da busca pelo propósito?
Mario Sergio Cortella
- A primeira coisa que desencadeou foi um tsunami tecnológico, que nos colocou
tantas variáveis de convivência que a gente fica atordoado.
A lógica para minha geração foi mais fácil. Qual era a
lógica? Crescer, estudar. Era escola, e dependendo da tua condição, faculdade.
Não era comunicação em artes do corpo. Era direito, engenharia, tinha uma
restrição.
Essa overdose de variáveis gerou dificuldade de fazer
escolhas. Isso produz angústia em relação a esse polo do propósito. Por que
faço o que estou fazendo? Faço por que me mandam ou por que desejo fazer? Tem
uma série de questões que não existiam num mundo menos complexo.
Não foi à toa que a filosofia veio com força nos últimos
vinte anos. Ela voltou porque grandes questões do tipo "para onde eu
vou?", "quem sou eu?", vieram à tona.
BBC Brasil - Podemos
dizer que nesse contexto vai ser cada vez menor o número de pessoas que não tem
esses questionamentos?
Mario Sergio Cortella
- Cada vez menor será o número de pessoas que não se incomoda com isso. O
próprio mundo digital traz o tempo todo, nas redes sociais, a pergunta:
"por que faço o que faço?", "por que tomo essa posição?". E
aquilo que os blogs e os youtubers estão fazendo é uma provocação: seja
inteiro, autêntico. É a expressão "seja você mesmo", evite a vida de
gado.
BBC Brasil - No seu
livro, você fala da importância do reconhecimento no trabalho. Qual é ela?
Mario Sergio Cortella
- O sentir-se reconhecido é sentir-se gostado. Esse reconhecimento é decisivo.
A gente não pode imaginar que as pessoas se satisfaçam com a ideia de um
sucesso avaliado pela conquista material. O reconhecimento faz com que você
perca o anonimato em meio à vida em multidão.
No fundo, cada um de nós não deseja ser exclusivo, único,
mas não quer ser apenas um. Eu sou um que importa. E sou assim porque é
importante fazer o que faço e as pessoas gostam.
BBC Brasil - Pelo que
vemos nas redes sociais, os jovens estão trazendo essa discussão de forma mais
intensa. Você percebeu isso?
Mario Sergio Cortella
- Há algum tempo tenho tido leitores cada vez mais jovens. Como me tornei meio
pop, é comum estar andando num shopping e um grupo de adolescentes pedir para
tirar foto.
Uma parcela dessa nova geração tem uma perturbação muito
forte, em relação a não seguir uma rota. E não é uma recuperação do movimento
hippie, que era a recusa à massificação e à destruição, ao mundo industrial.
Hoje é (a busca por) uma vida que não seja banal, em que eu
faça sentido. É o que muitos falam de 'deixar a minha marca na trajetória'.
Isso é pré-renascentista. Aquela ideia do herói, de você deixar a sua marca,
que antes, na idade média, era pelo combate.
O destaque agora é fazer bem a si e aos outros. Não é uma
lógica franciscana, o "vamos sofrer sem reclamar". É o contrário. Não
sofrer, se não for necessário.
Uma das coisas que coloco no livro é que não há
possibilidade de se conseguir algumas coisas sem esforço. Mas uma das frases
que mais ouço dos jovens, e que para mim é muito estranha, é: quero fazer o que
eu gosto.
BBC Brasil - Esse é
um pensamento comum entre os jovens quando se fala em carreira.
Mario Sergio Cortella
- Muito comum, mas está equivocado. Para fazer o que se gosta é necessário
fazer várias coisas das quais não se gosta. Faz parte do processo.
Adoro dar aulas, sou professor há 42 anos, mas detesto
corrigir provas. Não posso terceirizar a correção, porque a prova me mostra
como estou ensinando.
Não é nem a retomada do 'no pain, no gain' ('sem dor, não há
ganho'). Mas é a lógica de que não dá para ter essa visão hedonista, idílica,
do puro prazer. Isso é ilusório e gera sofrimento.
BBC Brasil - O
sofrimento seria o choque da visão idílica com o que o mundo oferece?
Mario Sergio Cortella
- A perturbação vem de um sonho que se distancia no cotidiano. No dia a dia, a
pessoa se coloca como alguém que vai ter um grande legado, mas fica imaginando
o legado como algo imediato.
Gosto de lembrar uma história com o Arthur Moreira Lima, o
grande pianista. Ao terminar uma apresentação, um jovem chegou a ele e disse
'adorei o concerto, daria a vida para tocar piano como você'. Ele respondeu:
'eu dei'.
Há uma rarefação da ideia de esforço na nova geração. E falo
no geral, não só da classe média. Tivemos uma facilitação da vida no país nos
últimos 50 anos - nos tornamos muito mais ricos. Isso gerou nas crianças e
jovens uma percepção imediatizada da satisfação das necessidades. Nas classes B
e C têm menino de 20 anos que nunca lavou uma louça.
BBC Brasil - Quais as
consequências dessa visão idealizada?
Mario Sergio Cortella
- Uma parte da nova geração perde uma visão histórica desse processo. É tudo
'já, ao mesmo tempo'. De nada adianta numa segunda castigar uma criança de
cinco anos dizendo: sábado você não vai ao cinema. A noção de tempo exige
maturidade.
Vejo na convivência que essa geração tem uma visão mais
imediatista. Vou mochilar e daí chego, me hospedo, consigo, e uma parte disso é
possível pelo modo que a tecnologia favorece, mas não se sustenta por muito
tempo.
Quando alguns colocam para si um objetivo que está muito
abstrato, sofrem muito. Eu faço uma distinção sempre entre sonho e delírio. O
sonho é um desejo factível. O delírio é um desejo que não tem factibilidade.
Muitos jovens querem deixar grande legado, mas não tem noção
de esforço, diz filósofo
BBC Brasil - Muitos
deliram nas suas aspirações?
Mario Sergio Cortella
- Uma parte das pessoas delira. Ela delira imaginando o que pode ser sem
construir os passos para que isso seja possível. Por que no campo do
empreendedorismo existe um nível de fracasso muito forte? Porque se colocou
mais o delírio do que a ideia de um sonho.
O sonho é aquilo que você constrói como um lugar onde quer
chegar e que exige etapas para chegar até lá, ferramentas, condições
estruturais. O delírio enfeitiça.
BBC Brasil - Qual é o
papel dos pais para que a busca pelo propósito dos jovens seja mais realista?
Mario Sergio Cortella
- Alguns pais e mães usam uma expressão que é "quero poupar meus filhos
daquilo que eu passei". Sempre fico pensando: mas o que você passou? Você
teve que lavar louça? Ou está falando de cortar lenha? Você está poupando ou
está enfraquecendo? Há uma diferença. Quando você poupa alguém é de algo que
não é necessário que ele faça.
Tem coisas que não são obrigatórias, mas são necessárias.
Parte das crianças hoje considera a tarefa escolar uma ofensa, porque é um
trabalho a ser feito. Ela se sente agredida que você passe uma tarefa.
Parte das famílias quer poupar e, em vez de poupar,
enfraquecem. Estamos formando uma geração um pouco mais fraca, que pega menos
no serviço. Não estou usando a rabugice dos idosos, 'ah, porque no meu tempo'.
Não é isso, é meu temor de uma geração que, ao ser colocada nessa condição,
está sendo fragilizada.
BBC Brasil - Sempre
lemos e ouvimos relatos de conflitos entre chefes e subordinados, alunos e
professores. Como se explicam esses choques?
Mario Sergio Cortella
- Criou-se um fosso pelo seguinte: uma criança ou jovem é criado por adultos,
que são seus pais e mantêm com eles uma relação estranha de subordinação. A
geração anterior sempre teve que cuidar da geração subsequente e essa vivia sob
suas ordens.
A atual geração de pais e mães que têm filhos na faixa dos
dez, doze anos, é extremamente subordinada. Como há por parte dos pais uma
ausência grande de convivência, no tempo de convivência eles querem agradar. É
a inversão da lógica.
Essa lógica faz com que, quando o jovem vai conviver com um
adulto que sobre ele terá uma tarefa de subordinação, na escola ou trabalho,
haja um choque. Parte da nova geração chega nas empresas mal-educada. Ela não
chega mal escolarizada, chega mal-educada.
Não tem noção de hierarquia, de metas e prazos e acha que
você é o pai dela. Obviamente que ela também chega com uma condição magnífica,
que é percepção digital, um preparo maior em relação à tecnologia.
Fonte: BBC Brasil